Paulo Coelho 2002 – Discurso de posse na Academia Brasileira de Letras


Discurso de Posse
Academia Brasileira de Letras
28 de Outubro 2002
SIC TRANSIT GLORIA MUNDI. Dessa maneira, Sćo
Paulo define a condiçćo humana em uma de suas
epístolas: a glória do mundo é transitória. E, mesmo
sabendo disso, o homem sempre parte em busca do
reconhecimento pelo seu trabalho.
Por quÄ™? Um dos maiores poetas brasileiros,
Vinícius de Moraes, diz em uma de suas letras de
mśsica:
 E no entanto é preciso cantar
mais que nunca é preciso cantar.
Vinícius de Moraes é brilhante nestas
frases. Lembrando Gertrud Stein, no seu poema  Uma
rosa é uma rosa, é uma rosa , apenas diz que é
preciso cantar. Nćo dá explicações, nćo justifica,
nćo usa metáforas. Quando me candidatei a esta
Cadeira, ao cumprir o ritual de entrar em contato
com os membros da Casa de Machado de Assis, ouvi do
acadÄ™mico Josué Montello algo semelhante. Disse-me
ele:  Todo homem tem o dever de seguir a estrada que
passa pela sua aldeia.
Por quÄ™?
O que existe nessa estrada?
Que força é essa que nos empurra para longe
do conforto daquilo que é familiar, e nos faz
enfrentar desafios, mesmo sabendo que a glória do
mundo é transitória?
Creio que esse impulso se chama: a busca do
sentido da vida. Por muitos anos procurei nos
livros, na arte, na cięncia, nos perigosos ou
confortáveis caminhos que percorri uma resposta
definitiva para essa pergunta. Encontrei muitas,
algumas que me convenceram por anos, outras que nćo
resistiram a um só dia de análise; entretanto,
nenhuma delas foi suficientemente forte para que
agora eu pudesse dizer:
o sentido da vida é este.
Hoje estou convencido que tal resposta
jamais nos será confiada nesta existÄ™ncia, embora,
no final, no momento em que estivermos de novo
diante do Criador, compreenderemos cada oportunidade
que nos foi oferecida  e entćo aceita ou rejeitada.
Em um sermćo de 1890, o pastor Henry
Drummond fala desse encontro com o Criador. Diz ele:
 Neste momento, a grande pergunta do ser
humano nćo será:  Como eu vivi?
Será, isto sim:  Como amei?
O teste final de toda busca é a dimensćo de
nosso Amor. Nćo será levado em conta o que
fizemos, em que acreditamos, o que
conseguimos.
Nada disso nos será cobrado, mas sim nossa
maneira de amar o próximo. Os erros que
cometemos nem sequer serćo lembrados. Nćo
seremos julgados pelo mal que fizemos, mas
pelo bem que deixamos de fazer. Pois manter o
Amor trancado dentro de si é ir contra o
espírito de Deus, é a prova de que nunca O
conhecemos, de que Ele nos amou em vćo.
Lendo a vida e obra daqueles que, antes de
mim, ocuparam a Cadeira 21, independentemente de
acreditarem ou nćo naquele encontro com o Criador,
este é o primeiro elemento mais presente: amor.
Todos buscaram um sentido para suas vidas, mas,
enquanto o procuravam, souberam transformar seus
passos em manifestações de amor ao próximo. E aí o
amor é entendido como algo mais amplo do que o
simples ato de gostar.
Martin Luther King lembrava que os gregos
possuem tręs palavras para designar esse sentimento:
a primeira é Eros, o amor saudável e necessário
entre dois seres humanos, que se buscam, se
encontram, ou se desencontram. A segunda palavra é
Philos, a paixćo que nos empurra ao encontro da
sabedoria, dos amigos, da filosofia, dos legados que
nos deixaram as gerações anteriores. Finalmente
existe a palavra Ágape, o amor maior, aquele a que 
como bem lembra Martin Luther King  Jesus se
referia quando disse:  Amai vossos inimigos. Um
amor que está além do ato de gostar, porque nćo
podemos gostar de quem nos agride, nos ofende, é
injusto em seus comentários, leviano em suas
acusações, preconceituoso em seu julgamento. Nćo
podemos gostar, mas podemos amar e, através do amor,
entender que por detrás de cada atitude mesquinha e
destruidora está um imenso desejo de ser
compreendido, aceito, apreciado.
Entćo, a essÄ™ncia de Ágape está nćo apenas
nos que aqui me precederam nesta Cadeira 21, mas em
todos, em todas as cadeiras desta Casa, deste
auditório, em todas as cadeiras do mundo. Basta
apenas reunir coragem suficiente para lutar por seus
sonhos, e  de novo me apoio em uma expressćo
cunhada pelo apóstolo Sćo Paulo   combater o bom
combate, e manter a fé.
Em 1986, quando fazia o Caminho de Santiago
em busca de uma espada, a mesma espada que daqui a
pouco me será de novo entregue, simbolicamente,
pelo acadÄ™mico Josué Montello, eu compreendi pela
primeira vez o sentido dessa expressćo.
O Bom Combate é aquele travado porque o
nosso coraçćo pede. Nas épocas heróicas, no tempo
dos cavaleiros andantes, isso era fácil, havia muita
terra para conquistar e muita coisa para fazer.
Hoje, porém, o mundo mudou, e o Bom Combate veio dos
campos de batalha para dentro de nós mesmos.
O Bom Combate é aquele que é travado em nome
de nossos sonhos. Quando eles explodem dentro de nós
com todo o seu vigor  na juventude  temos muita
coragem, mas ainda nćo aprendemos a lutar. Depois de
muito esforço, terminamos aprendendo, e entćo já nćo
temos a mesma coragem. Por isso, nos voltamos contra
nós, e nos transformamos em nosso pior inimigo.
Dizemos que nossos sonhos eram infantis, difíceis de
realizar, ou frutos de nosso desconhecimento das
realidades da vida. Matamos nossos sonhos porque
temos medo de combater o Bom Combate.
O primeiro sintoma de que estamos matando
nossos sonhos é a falta de tempo. As pessoas mais
ocupadas que conheci na minha vida sempre tęm tempo
para tudo e para todos. As que nada fazem estćo
sempre cansadas, nćo dćo conta do pouco trabalho que
precisam realizar, e se queixam constantemente que o
dia é curto demais. Na verdade, elas tÄ™m medo de
saber onde vai dar a misteriosa estrada que passa
pela sua aldeia.
O segundo sintoma da morte de nossos sonhos
sćo nossas certezas. Porque nćo queremos aceitar a
vida como uma grande aventura a ser vivida, passamos
a nos julgar sábios, justos e corretos. Olhamos para
além das muralhas do nosso mundo organizado, onde a
ciÄ™ncia e a filosofia já tÄ™m todas as respostas,
onde todas as dÅ›vidas já foram resolvidas pelas
ideologias, conceitos e preconceitos. Olhamos e
vemos as grandes quedas e os olhares sedentos de
conquista dos guerreiros, ouvimos o ruído de lanças
que se quebram, sentimos o cheiro de suor e pólvora.
Entćo dizemos, do alto de nossas torres de marfim:
 Eles nćo sabem o que eu sei. Com essa atitude
arrogante, jamais percebemos a alegria, a imensa
Alegria que está no coraçćo de quem está lutando,
porque para esses nćo importa nem a vitória nem a
derrota, mas apenas olhar o mundo como se fosse uma
pergunta  nćo uma resposta  e através dessa
pergunta tentam dignificar suas vidas.
Raul Seixas descreve bem a alegria no
coraçćo dos guerreiros, ao escrever:
Prefiro ser
Uma metamorfose ambulante
Do que ter aquela velha opinićo
Formada sobre tudo.
Finalmente, o terceiro sintoma da morte de
nossos sonhos é a Paz. A vida passa a ser uma tarde
de Domingo, sem nos pedir grandes coisas, e sem
exigir mais do que queremos dar. Achamos entćo que
estamos maduros, deixamos de lado as fantasias da
infância, e conseguimos nossa realizaçćo pessoal e
profissional. Ficamos surpresos quando alguém de
nossa idade diz querer ainda isso ou aquilo da vida.
Mas, na verdade, no íntimo de nosso coraçćo, sabemos
que o preço dessa paz foi nossa renÅ›ncia Ä… luta por
tudo que considerávamos interessante, e por tudo que
nos entusiasmava fazer.
Quando encontramos a paz, temos um curto
período de tranqüilidade. Mas os sonhos mortos
começam a apodrecer dentro de nós, e a infestar o
ambiente em que vivemos. Começamos a nos tornar
cruéis com aqueles que nos cercam, e finalmente
passamos a dirigir essa crueldade contra nós mesmos.
Surgem as doenças e as psicoses. O que queríamos
evitar no combate  a decepçćo e a derrota  passa a
ser o śnico legado de nossa covardia. E, num belo
dia os sonhos mortos e apodrecidos tornam o ar
difícil de respirar e passamos a desejar a morte, a
morte que nos livre de nossas certezas, de nossas
ocupações, e da paz das tardes de domingo.
Nenhum dos ocupantes desta Cadeira 21
experimentou  graças a Deus  essa terrível paz. O
teatrólogo Dias Gomes, em seu discurso de posse,
chamou-a de  A cadeira da Liberdade . O economista
Roberto Campos a chamou de  Cadeira do Ecletismo .
Eu preferiria chamá-la, entretanto, de  Cadeira da
Utopia . Utopia em seu sentido clássico, referindo-
me ao momento ideal da história da civilizaçćo na
qual todas as conquistas do homem seriam
consolidadas entre seus semelhantes; o país
imaginário do escritor inglÄ™s Thomas Morus, no qual
um governo, organizado da melhor maneira,
proporciona ótimas condições de vida a um povo
equilibrado e feliz.
O fundador da Cadeira 21, José do
Patrocínio, herói da Aboliçćo da Escravatura, diz
em um dos seus discursos. Cito:
 Dentro em trÄ™s dias vai começar a
história moderna do Brasil e fechar-
se a triste história dos tempos
bárbaros da nossa terra. Nćo é
demasiado otimismo profetizar que a
nossa evoluçćo nacional será feita
com a mesma rapidez da dos Estados
Unidos.
As estrelas do sul dentro em um
quarto de século nćo invejarćo o
fulgor da constelaçćo do norte.
Um quarto de século se passou, e outro, e
muitos outros. Apesar da aboliçćo da escravatura,
todos nós sabemos que até hoje o sonho de José do
Patrocínio ainda nćo se tornou realidade.
Entretanto, ele nos legou sua utopia, e nós
continuamos a lutar por ela.
Sucedeu-o o poeta Mário de Alencar, descrito
por todos como um homem tímido e recluso, cujo
modelo de vida era o corajoso Sócrates. Suas obras
só nos chegaram por causa da dedicaçćo de seus
filhos. Tinha como ideal a beleza pura, e comentava
em um dos seus versos:
 Goza mulher teus dias
que as puras alegrias
vęm da ilusćo.
De novo a idéia utópica de um mundo no qual
é possível, apesar da ilusćo, permitir-se o prazer
das grandes alegrias. O mesmo acontecia com o poeta
Olegário Mariano, que o sucedeu: embora mais
extrovertido em seu comportamento  afinal, sćo dele
várias letras de mÅ›sicas, uma das quais ainda
cantamos:  Cai, cai, balćo  leva a sua utopia do
terreno literário para o campo político, como antes
fizera José do Patrocínio. Luta por um Brasil
moldado no ideário de GetÅ›lio Vargas.
Quero fazer uma pequena observaçćo aqui: nćo
me cabe, neste discurso de posse, julgar as
afinidades partidárias dos ocupantes desta Cadeira,
mas o empenho sincero que tiveram em procurar uma
opçćo melhor para o Brasil, levando em conta suas
convicções pessoais.
Como os seus predecessores, também Olegário
Mariano quer seguir um sonho impossível. Ele mantém
em seu horizonte os ideais utópicos da existęncia.
Como nos versos a seguir. Cito:
 Vida! Quero viver todas as tuas horas,
As que prendi na mćo e as que nunca
alcancei.
Álvaro Moreyra, o cronista do Rio, é o
próximo ocupante, um dos precursores do novo teatro
brasileiro, que se declara adepto da utopia
comunista. Deixa importante legado literário, que
inclui um estudo sobre o teatro espanhol na
Renascença, escrito em 1946, e a peça  Adćo e Eva e
outros membros da família (1929) , que até hoje faz
parte do repertório de muitas companhias teatrais.
Em seu trabalho poético, de novo o mesmo louvor
utópico Ä… vida, que o acompanhou até nos dizeres de
seu epitáfio:
O epitáfio de Álvaro Moreyra é o seguinte:
 Acreditei na Vida, e a Vida em mim.
Depois, desandamos a rir de nós
mesmos - os dois.
O crítico Adonias Filho, que sucede Álvaro
Moreyra, parte para uma utopia exatamente oposta:
ex-integralista, defende o golpe militar de 1964.
Mas é tćo íntegro em suas convicções que merece o
respeito de Jorge Amado, militante de campo
exatamente oposto, que faz questćo de recebę-lo
nesta Casa. Provocador, irônico, Adonias Filho
declara em um dos seus textos:
 Ainda se discute a utilidade dos
críticos. Os escritores louvados sćo
a favor. Os outros sćo contra. O
pśblico, felizmente, nćo se interessa
pela discussćo. Parece-me que os
críticos nćo deixam de ser Å›teis. A
alguns, eu devo a ampliaçćo dos meus
conhecimentos literários. Se eles nćo
houvessem constatado a profunda
influęncia exercida sobre mim por
certos autores, com certeza eu nunca
os leria depois...
De novo o pęndulo da Cadeira 21 oscila para
uma utopia oposta: é a vez de Dias Gomes entrar para
a Academia Brasileira de Letras, trazendo em seu
teatro e na sua vasta bagagem literária o sonho de
um Brasil redimido pela vitória do oprimido sobre o
opressor. Seu nome torna-se mundialmente conhecido
quando uma de suas peças,  O Pagador de Promessas ,
é transformada em filme e ganha a Palma de Ouro no
Festival de Cannes, na França. Dono de uma linguagem
moderna, é levado pelas circunstâncias a escrever
para a televisćo, e o faz de maneira inovadora,
criando obras que até hoje permanecem no imaginário
do povo, como  O Bem Amado e  Roque Santeiro . Em
uma de suas peças,  O Santo Inquérito , a personagem
Branca comenta sobre o abismo que separa o sonho da
realidade:
 Deus deve estar onde há mais
claridade, penso eu. E deve gostar de
ver as criaturas livres como Ele as
fez, usando e gozando essa liberdade,
porque foi assim que nasceram e assim
devem viver. Tudo isso que estou lhes
dizendo, é na esperança de que vocÄ™s
entendam ... Porque eles, eles nćo
entendem... Vćo dizer que sou uma
herege e que estou possuída pelo
demônio.
Com sua morte trágica, prematura, que privou
o Brasil contemporâneo de uma de suas inteligÄ™ncias
mais brilhantes, o pęndulo torna a oscilar e, em uma
eleiçćo onde a discussćo sobre utopias foi a tônica,
Roberto Campos consegue a maioria necessária para
ocupar a Cadeira 21.
Lembro-me de, ainda jovem, ir para as ruas
protestar contra sua política econômica  embora na
época nćo tivesse sequer idéia do que isso
significava. Fernando Sabino, porém, cunhou uma
expressćo primorosa:  Todo homem é incendiário aos
vinte anos, e bombeiro aos quarenta. Aos quarenta
anos, quando resolvi comprar o meu primeiro
computador, vi um Brasil paralisado pela Lei da
Informática, caminhando a passos largos em direçćo -
nćo ao futuro, mas ao passado. Essa lei, que Roberto
Campos tanto combatera, e que antes era uma
abstraçćo para mim, agora se transformava em algo
concreto: estava me privando de um instrumento de
trabalho.
Ainda durante minha transiçćo de incendiário
a bombeiro, tive oportunidade de ler muitos artigos
seus, e  mesmo a contragosto, já que sempre somos
mais sectários do que ousamos admitir  terminei por
lhe dar razćo. O meu suposto inimigo de antes
transformava-se em um homem capaz de defender com
coeręncia e responsabilidade a sua utopia, buscando
aí todas as tribunas possíveis.
Minha admiraçćo chegou a tal ponto que,
sabendo de uma noite de autógrafos de seu livro
 Lanterna de Popa , fui até a Gávea para encontrá-
lo. Uma chuva torrencial impediu muitas pessoas de
comparecer, e eu tive a oportunidade de privar, por
meia hora, da sua intimidade e inteligęncia
fulgurante.
Firme nas convicções, eloqüente nas
argumentações, polÄ™mico e provocador, Roberto de
Oliveira Campos marcou a história do Brasil moderno.
Correndo sempre o risco de nćo ser compreendido, era
capaz de lutar até o fim por tudo aquilo que julgava
melhor para nossa Pátria.
Poucos foram os que se aplicaram em
identificar profundamente o pensamento de Roberto
Campos, e, entre estes encontra-se o jornalista
Olavo Luz. Em sua biografia  Roberto Campos, o homem
por detrás do mito , Olavo nos deu uma dimensćo
humana desse Economista, Professor, Embaixador,
Ministro de Estado, Senador, Deputado, e Acadęmico.
Roberto Campos viveu entre o amor e o ódio.
Despertava a fśria raivosa dos contendores e a
paixćo extremada, quase uma religićo, dos
admiradores. Um episódio na vida do meu antecessor
merece especial atençćo:
Corriam os chamados  anos de chumbo , cujo
prolongamento Roberto Campos tanto condenou,
defendendo o retorno do poder Ä… sociedade civil,
após o governo Castelo Branco, que chamava de
 arrumaçćo da casa . Carlos Lacerda, também um
brilhante político e, naquele momento, em campo
oposto ao entćo Ministro Extraordinário do
Planejamento, cunhou uma frase histórica:
 O senhor Roberto Campos irrita a todos:
mata os ricos de raiva e os pobres de fome .
Impassível, Roberto Campos respondeu com uma
outra frase histórica, que seria também uma
declaraçćo honrada de armistício:
 A violęncia da flecha dignifica o alvo .
 A violęncia da flecha dignifica o
alvo .Muitas vezes, em momentos em que me sentia
julgado com severidade excessiva pela crítica, me
recordava dessa frase. E me lembrava de outro sonho,
do qual eu nćo estava disposto a desistir: entrar,
um dia, para a Academia Brasileira de Letras.
Há cinco anos, o acadÄ™mico Eduardo Portella,
durante o lançamento de  O Monte Cinco na França,
me se eu consideraria a possibilidade de uma
candidatura. Perguntei se estava falando sério; ele
disse que sim.
Pouco tempo depois, Maria Eugenia Stein,
amiga de longa data, resolveu promover um encontro
com o entćo Presidente da Academia, Arnaldo Niskier.
Retirei o sonho do meu coraçćo, convidei-o para
tomar um chá em minha casa, conversei abertamente
sobre minhas pretensões, e tornei a guardar meu
sonho em lugar onde pudesse contemplá-lo de vez em
quando.
No dia 9 de outubro de 2001, eu participava
do Festival de Autores e Cineastas, em Montecarlo.
Conversava despreocupadamente com o diretor
americano Sidney Pollack, quando meu telefone
celular tocou: Roberto Campos havia morrido.
Pedi licença a Pollack, caminhei até a
praia, fiquei contemplando o Mediterrâneo. Nos
momentos em que precisamos tomar uma decisćo muito
importante, é melhor confiar no impulso, na paixćo,
porque a razćo geralmente procura nos afastar do
sonho  justificando que ainda nćo é chegada a hora.
A razćo tem medo da derrota. Mas a intuiçćo gosta da
vida, e dos desafios da vida. Eu também gosto, de
modo que resolvi me candidatar, e confiei em meus
amigos da Academia. Pessoas mais próximas me
perguntavam:  Mas está mesmo na hora? Por que vocÄ™
nćo deixa isso para mais adiante? Eu respondia:
 Como é que vocÄ™ sabe que  mais adiante é a hora
certa? 
E segui em frente.
Vez por outra me lembrava de um episódio de
minha adolescęncia: Com um grupo de amigos da
Academia de Letras do Colégio Santo Inácio  onde
cursava o ginasial  vimos até aqui para assistir a
uma palestra. Foi preciso vestir terno e gravata,
tomar o bonde, viajar muito tempo para chegar ao
centro da cidade. Nćo me lembro da palestra, nem do
palestrante - mas a primeira impressćo desse lugar
jamais saiu de minha cabeça.
Hoje, quase 40 anos depois, estou nesta
tribuna, fazendo meu discurso de posse. O que era
uma utopia de adolescente virou  no início da
década de 90  uma verdadeira heresia. Mas, como
acontece com algumas heresias, esta também se
transformou em realidade. Lutei por esse sonho,
confiei em meus amigos, combati o bom combate e
mantive a fé. Aprendi com Jorge Amado, o maior
escritor brasileiro do século XX, o insubstituível,
o grande, o generoso, o digno Jorge Amado, que as
utopias sćo possíveis.
E hoje aqui com vocęs, celebramos juntos.
Antes de terminar, gostaria de citar outros
dois escritores que nunca conheceram a glória, mas
que realizaram seu trabalho com dignidade e
dedicaçćo. Um deles jamais sonhou que um dia seu
nome seria pronunciado nesta tribuna, e talvez
alguns considerem isso anátema, mas nćo posso deixar
passar a oportunidade: trata-se de José Mauro
Vasconcellos. Jamais li um livro seu, mas nćo posso
perder este momento śnico para agradecę-lo por ter
levado seu trabalho aos quatro cantos do mundo,
ajudando a mostrar Ä…s mais diferentes culturas o que
existe na alma intensa e comovente do povo
brasileiro.
O outro escritor, um professor de
matemática, escondido atrás de um pseudônimo
misterioso, povoou minha imaginaçćo infantil com
lendas do deserto, dos céus e da terra, das mil
histórias sem fim que o povo árabe conta, e que,
mais tarde, estariam na gestaçćo de meu livro mais
conhecido:  O Alquimista. Trata-se de JÅ›lio César
de Mello e Souza, conhecido por todos os seus
leitores como Malba Tahan. É de sua autoria a
história que agora narro, com minhas palavras, e que
tćo bem reflete a frase de Sćo Paulo sobre a glória
do mundo:
 Na antiga Roma, na época do imperador
Tibério, vivia um homem muito bom, que tinha dois
filhos: um era militar, e quando entrou para o
exército, foi enviado para as mais distantes regiões
do Império. O outro filho, versado em letras, virou
um poeta famoso, que encantava Roma com seus versos.
 Certa noite, o homem teve um sonho. Um anjo
lhe aparecia para dizer que as palavras de um de
seus filhos seriam conhecidas e repetidas no mundo
inteiro, por todas as gerações vindouras. Acordou
agradecido e chorando, porque a vida era generosa, e
havia lhe revelado uma coisa que qualquer pai teria
orgulho de saber.
 Pouco tempo depois, morreu ao tentar salvar
uma criança que ia ser esmagada pelas rodas de uma
carruagem. Como tinha se comportado de maneira
correta e justa em toda a sua vida, foi direto para
o céu, e encontrou-se com o anjo que lhe aparecera
em sonhos.
  VocÄ™ foi um homem bom  disse-lhe o anjo.
 Viveu sua existęncia com amor, e morreu com
dignidade. Posso realizar agora seus desejos.
  A vida também foi boa para mim 
respondeu o homem.  Quando vocÄ™ me apareceu em
sonho, senti que todos os meus esforços estavam
justificados. Porque os versos de meu filho serćo
passados de geraçćo em geraçćo. Nada tenho a pedir
para mim; entretanto, todo pai se orgulharia de
testemunhar a imortalidade de alguém que ele cuidou
quando criança e educou quando jovem.
 O anjo tocou em seu ombro, e os dois foram
projetados para um futuro distante. Em volta deles
apareceu um lugar imenso, com milhares de pessoas,
que falavam uma língua estranha.
 O homem chorou de alegria.
  Eu sabia que os versos do meu filho eram
bons e imortais  disse para o anjo, entre lágrimas.
 Toda Roma se encantava com eles, e sei algumas de
suas poesias de cor:
gostaria que me dissesse qual delas estas pessoas
estćo repetindo.
  Os versos de seu filho poeta foram muito
populares em Roma  disse o anjo.  Todos gostavam,
e se divertiam com eles. Mas, quando o reinado de
Tibério acabou, seus versos também foram esquecidos.
Estas palavras sćo de seu filho que entrou para o
exército.
 O homem olhou surpreso para o anjo, que
continuou:
  Seu filho foi servir num lugar distante.
Era também um homem justo e bom. Certa tarde, um dos
seus servos ficou doente, e estava para morrer. Seu
filho, entćo, ouviu falar de um Rabi que curava os
doentes, e andou dias e dias em busca daquela
pessoa. No caminho, descobriu que o homem que
procurava era o Filho de Deus. Encontrou outras
pessoas que haviam sido curadas por Ele, aprendeu
seus ensinamentos, e, mesmo sendo um centurićo
romano, converteu-se ao seu credo. Até que certa
manhć chegou perto do Rabi.
 Contou-lhe que tinha um servo doente. E o
Rabi se prontificou a ir até sua casa. Mas o
centurićo era um homem de fé, e olhando no fundo dos
olhos do Rabi, disse nćo ser necessário.
 O anjo tornou a mostrar as pessoas e, de
repente, todas se levantaram:
  Estas sćo as palavras do seu filho
soldado  disse o anjo ao homem.  Sćo as palavras
que ele disse ao Rabi naquele momento, e que nunca
mais foram esquecidas:
 Senhor, eu nćo sou digno que entreis em
minha casa, mas dizei uma só palavra e meu
servo será salvo .
SIC TRANSIT GLORIA MUNDI. A glória do mundo
é transitória, e nćo é ela que nos dá a dimensćo de
nossa vida  mas a escolha que fazemos, de seguir
nossa lenda pessoal, acreditar em nossas utopias,
e lutar por elas. Somos todos protagonistas de
nossas existęncias, e muitas vezes sćo os heróis
anônimos  como o centurićo romano  que deixam as
marcas mais duradouras.
Conta uma lenda japonesa que certo monge,
entusiasmado pela beleza do livro chinęs Tao Te
King, resolveu levantar fundos para traduzir e
publicar aqueles versos em sua língua pátria.
Demorou dez anos até conseguir o suficiente.
Entretanto, uma peste assolou seu país, e o
monge resolveu usar o dinheiro para aliviar o
sofrimento dos doentes. Mas assim que a situaçćo se
normalizou, de novo partiu para arrecadar a quantia
necessária Ä… publicaçćo do Tao; mais dez anos se
passaram, e quando já se preparava para imprimir o
livro, um maremoto deixou centenas de pessoas
desabrigadas.
O monge de novo gastou o dinheiro na
reconstruçćo de casas para os que tinham perdido
tudo. Outros dez anos correram, ele tornou a
arrecadar o dinheiro, e finalmente o povo japonęs
pôde ler o Tao Te King.
Dizem os sábios que, na verdade, esse monge
fez trÄ™s edições do Tao: duas invisíveis, e uma
impressa. Ele acreditou na sua utopia, combateu o
bom combate, manteve a fé em seu objetivo, mas nćo
deixou de prestar atençćo ao seu semelhante. Que
seja assim com todos nós: ąs vezes os livros
invisíveis, nascidos da generosidade para com o
próximo, sćo tćo importantes quanto aqueles que
levam escritores a ocupar uma vaga na Academia
Brasileira de Letras.
Muito obrigado.


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